CONTO
UM GRITO DE ALEGRIA, NA PASSAGEM DA MORTE
Importante será dizer, naquela terra, Monte de Novais, havia muitas famílias, importantes com muita certeza, contudo o facto é que, a merecer a sua história contada, nestes pequenos contos, só as que, se destacam pela ternura dos factos, ou pelo insólito do acontecimento.
Uma aldeia no cimo de um monte, igual a tantos outros que a circundavam, onde quem queria chegar até lá, teria sem duvida de subir as suas ladeiras.
Num conjunto de tradições e princípios, em saudáveis costumes, no sentir dos deveres familiares, onde os velhinhos ainda são tratados no seio da família, ou mesmo no seu próprio lar.
Onde criaram os seus filhos, e onde em consciência desejam, passar o resto dos seus dias, até chegar o momento final, da passagem na terra.
Começa aqui uma história de grande profundidade humana, de cooperação comunitária, numa pequena aldeia com cerca de, duzentos oitenta residentes.
Uma rua sem nome, uma casinha velhinha, baixinha, com uma única porta, e uma janela, bem pequenina, numa rua sem asfalto ou alcatrão, apenas terra batida, por vezes cheia de buracos, ou de poças de água quando chovia.
Ali naquela rua, passava o trânsito local, as carroças que saiam de manhã, com os seus proprietários para trabalhar nas fazendas, onde se esforçavam por ganha o seu pão, levavam as suas ovelhas prezas nas carroças, que por lá andavam o dia inteiro também a pastar.
Passavam também as ovelhas, dos dois rebanhos, de, uns vizinhos ali da terra, algumas alegravam a sua passagem, com alguns chocalhos, ou ainda deixando as suas caganitas, enquanto iam aliviando a tripa, na sua passagem.
Passavam os tractores a caminhos para os trabalhos, os carros que levavam e traziam, os habitantes da terra, para as vilas ou cidade próximas, para os seus trabalhos.
A casa ficava um pouco recuada, da linha das restantes, e com uns bons centímetros, em rebaixo do nível da estrada.
Na frente um pequeno retiro, entre a porta e a estrada, uma nespereira bem perto da porta, para dar sombra, onde se sentava a tia Áurea, nas tardes quentes de Verão, e dava mais,… os seus frutos bem apreciados e saborosos.
Tinha duas roseiras, uma de rosas brancas, lindíssimas e antiga, outra de rosas cor-de-rosa, a que chamavam rosas de açafate, que eram grandes, dobradas, muitas pétalas, e cheirosa que regalava, no jardim ou na jarra, da mesa da casa de fora.
A frente da casa, era muito estreita e, a única porta dava acesso directo até ao quintal, o chão da casa de fora, era de tijoleiras, mas já tão gastas, pelos sítios onde se andava demais, principalmente os homens com as sua botas grossas com cardas, gastavam a tijoleira, e fazia todo o piso irregular.
Como os homens só podiam comprar um par de botas por ano, todas as botas era com a sola forradas da cardas, assim nem esbarravam, nem se gastavam as solas, muitas vezes as cardas é que era substituídas.
Muitas vezes mandavam por tombas e viras ou biqueiras nas botas, pelo desgaste da porte de cima, mas as solas lá iam aguentando com a protecção das cardas.
Era esse o único calçado que os homens usavam, com ele trabalhavam um ano inteiro, pelas encostas cavando, ou fazendo todos e quaisquer trabalhos do campo.
Continuando a falar da casa, era sempre a casa de fora compartimento maior, já o quarto era bem menor, onde cabia apenas uma cama de ferro, suficiente para o descanso da noite, e pouco mais que isso.
Seguindo até á cozinha, também pequena, onde a chaminé para cozer a comida, e uma pequena mesa, mais dois ou três mochos, seria o mobiliário suficiente.
Sempre em frente saia-se para o quintal, também pequeno, limitado pelo espaço dos vizinhos, pelos muros de pedra, quase solta, ou paredes altas de pedras toscas e negras, saltando á vista.
Foi ali que a tia Áurea teve os seus filhos, que os criou, na companhia do seu marido, como grande evidência de que, numa pequena casa, se podia criar uma grande família.
Depois de tudo feito, filhos criados e casados, os anos passaram, agora tia Áurea vivia sozinha, ali na sua casinha, uma mulher que devia ter sido alta, mas já andava curvada á muitos anos, encostada num cajado, isso já lhe tinha retirado um bom pedaço da sua altura.
Toda vestida de preto, tinha-lhe morrido o marido já havia alguns anos também, nunca saia à rua sem por o seu lenço preto, mesmo com muito calor, colocava o seu lenço de uma maneira muito própria, caído sobre a testa, fazia duas dobras para dentro, dos lados, para depois atar por baixo do queixo.
Queixo esse muito pontiagudo, o dito queixo de “rabeca, como se dizia na terra,” era um queixo muito saliente, onde a boca muito encovada e sem dentes, faziam ainda salientar mais.
Era ela uma mulher de rija têmpera, das que devia ter tido sempre a ultima palavra em tudo, não se deixava levar com palavrinhas ou acordos, e por isso mesmo uma mulher difícil e conflituosa.
Na luta pelos seus direitos, não deixava levar-se, nem deixava nas mãos dos outros, o que pudesse fazer com as suas, e muitas vezes as brigas com os vizinhos acabava por meter a G N R para a solução de causas, ela não ficava por acordos pacíficos.
Bastava as águas fluviais, ou da chuva, e ai havia um motivo para briga, isto porque era natural que a água corresse para o lado mais baixo, que seria a casa dela, mas não queria,… e assim entre brigas e quezílias, resolveu fazer um muro mais alto do que os vizinhos, que ficassem eles com as águas.
Outros ainda se pensaram fazer um muro em tijolo, os homens construíam, ela destruía, isto até ser vencida pelas multas que teve de pagar.
Como vizinhos do lado, vivia o tio Manuel Caleiro, isto porque vendia cal, e a sua mulher a tia Arminda, um doce de pessoa, pequenina, maneirinha, de palavras suaves, como suave eram seus gestos, suas maneiras.
Enquanto ele vendia cal, atrelava o macho, carregava a carroça, colocava a balança, ai ia ele pelas terras vizinhas fazer a sua venda, havia sempre os tempos especiais para as maiores vendas, tal como o Verão, porque todas as pessoas caiavam as casas.
Na Primavera porque se vendia também a cal virgem para misturar na calda de sulfato azul, para curar as videiras e arvores, para afugentar as pragas, depois também perto do Natal para caiar as casas, as chaminés.
Onde se queimava a lenha, tinha de haver cal de caiar, sempre que se cozia o pão, tinha de se caiar á volta da boca do forno, e coziam o pão alvo, ou de milho, pelo menos no Inverno, pelo menos uma vez por semana, não havia dia de limpeza em que não se aplicasse cal de caiar.
Conforme a bolça de cada um, mais do que a necessidade, poderia comprar mais ou menos cal, uma simples pedra, poderia dar já para algum tempo, mas poderiam comprar meia arroba, uma arroba, ou mais, dependendo assim de cada bolça.
Contudo o tio Manuel, não vendia só a cal, quando saia para a vender, levava a carroça carregada de cal, apregoava pelas terras, “caaaaaaldecaiaaaaaaaaar” com a venda total da cal, voltava a apregoar “feeerrrroooveeeeelhhhho” e comprava tudo o que lhe quisessem vender.
A tia Arminda era a peixeira da terra, era mais conhecida pela sardinheira, pois o que se vendia mais eram as sardinhas, o conduto do povo pobre do campo.
Era o que os seus magros salários davam para comprar, até costumavam dizer que, nos dias de Inverno, se conseguiam trabalhar que,” já tinham ganhado para as sardinhas.”
E quem as vendia ali na terra era a tia Arminda, quando alguém lhe perguntava, “ ó ti Arminda as sardinhas são boas?”
Ela logo respondia, fosse qual fosse a hora, logo nas primeiras horas da manhã,” se são filha!… ainda agora acabei de comer uma, uma maravilha.”
E estas sardinhas comidas em cima de um pedaço de pão caseiro, com umas migas, um magusto, uma tiborna, ou lapardana, caiam que nem ginjas, comida simples, Ribatejana, confeccionada apenas com pão, batata, e hortaliças, iguarias apenas da casa dos pobres.
Contudo as sardinhas podiam ser frescas ou salgadas, assim como as sardas, “escorrechadas,”era apenas o nome que se dava, às sardinhas e sardas que, eram abertas a meio pela espinha, cabeça cortada, e carregadas de sal, para sua conservação, depois vendiam assim, e normalmente era mais para cozer, tinham de se por antecipadamente de molho para sair o sal, depois era só cozinhar.
Outros vizinhos, tinha esta aldeia, e ali pertinho uma outra família, os Carrapiços, viviam dois irmãos frente a frente, que se iam levando de razões, sempre desenvolvidas pelas partilhas de bens, e era tão difícil a sua relação, que se desenvolveu um ódio visceral.
Certo dia no meio de uma briga feia, resolveram as questões em luta corpo a corpo, não se sabe bem quem deu mais, nem quem levou menos, e todos sabemos que quem conta um conto, aumenta um ponto, pode ser que aqui também tenha acontecido.
Mas fiquem sabendo que os ditos senhores não ficaram por meias medidas, não lutaram com armas, é certo, contudo aconteceu algo que talvez acabasse ali com as suas brigas, na luta alguém levou a melhor, por ventura até, batendo menos, mas aconteceu…
Deu tamanha dentada na orelha do irmão, que lhe arrancou um pedaço de orelha, e assim acabaram a briga, “toma lá!…”fica agora marcado para o resto da vida.
Pelo meio destes residentes a casa dos Alves uns vizinhos muito engraçados, um casal modelo, ainda que, com idade da reforma, eles saiam de casa sempre os dois, iam até às fazendas para fazer alguns trabalhos do campo.
Quando saiam de casa, ele colocava uma saca de linhagem dobrada no ombro, uma sachola por cima, a saca dava sempre jeito para dormir a sesta, numa boa sombra, a sachola sempre necessária também, cortar uns cardos, sachar as culturas, ou até matar uma cobra incómoda que apareça.
A senhora Alves colocava o seu avental de mulher do campo, um lenço colocado na cabeça, mas sem ser atado, com as três pontas caídas, uma rodela por sua vez, para colocar a sesta de vime com o almoço, tapada com um pano bonito, assim passavam os seus dias sempre juntos, como sempre tinha sido, em todos os dias das suas vidas.
Até que chegou o momento, entregaram as suas fazendas para as filhas, e ficaram gozando a sua vida de reformados, a sua casa ficava ali bem na passagem, num sítio bonito, num cruzamento de ruas, viam tudo e todos para qualquer lado que olhassem, passaram a ficar sentados, na sua sala, a ver as pessoas passar, ou na janela, uma vida mais parada mas amorosa.
O tempo foi passando, a tia Áurea foi descaindo, até que ficou sem forças, as suas noras vinham dar-lhe a comida, passaram a dormir lá na casa dela, depois a estar noite e dia, até que os últimos dias foram chegando.
Um dia uma das noras, era muito medrosa, disse a duas vizinhas, que tinha medo que ela morresse, na sua semana, e ela sozinha com ela, tinha medo de mortos, e não conseguia vesti-la se ela morresse.
As vizinhas ofereceram-se para lhe dar apoio, para as chamar, se algo acontecesse, e assim foi, tia Áurea morreu, as vizinhas foram chamadas, foram vesti-la, peça por peça de vestuário, depois as meias, sem ligas, a viagem que ia fazer, não lhe fazia cair as meias, ali estava quase pronta para a última viagem.
Alheias a tudo isso, andavam por ali brincando umas crianças, dois irmãos pequenos, que viviam com a avó, brincavam alegremente, soltos e á vontade, no meio da rua, com o bisneto da tia Arminda, e com as suas alegrias naturais de crianças felizes.
Dentro da casa da tia Áurea, o drama continuava, ou nem tanto, era natural que uma pessoa de idade avançada, morresse, a tal ordem natural das coisas, e da vida.
Depois de arranjada e deitada na cama, esperando a cangalheiro, com um lenço atado, do queixo ao cocuruto da cabeça a amarrar, para que a boca não ficasse aberta, só faltava calçar os sapatos, a vizinha mais nova era a primeira vez que vestia uma pessoa, mas gostava de experiencias novas, de desafios, e ela ia-lhe calçar os sapatos.
Os sapatos eram um pouco justos, talvez mesmo apertados, ou talvez e defunta tivesse os pés inchados, o que era certo é que, a vizinha tinha de forçar, carregar, estava difícil entrar os pés, naqueles sapatos.
A última tentativa, fez toda a força, fazendo entrar o pé no sapato, foi nesse mesmo instante que ela embrenhada no seu desempenho, ouviu um grito, não sabia de onde esse grito surgiu, a primeira coisa que fez foi largar os pés da criatura, com um sobressalto, olhou a cara dela, seria ela a queixar-se de dor pelos sapatos apertados.
A sua colega de boa vontade, olhou para ela e riu-se ela sabia de onde tinha vindo o grito, não era um grito de dor, mas antes um grito de alegria, de uma alegria alheia ao que se passava ali naquela casa, um grito de alegria, de crianças que brincavam felizes na rua, ali mesmo ao lado.
Dentro de casa descansava para sempre, das suas quezílias, das suas lutas a tia Áurea.
O tio Manuel Caleiro, também já tinha morrido, mas ficou a tia Arminda, com a sua calma e doçura, e quando já pouco podia fazer, encontrou uma maneira de se entreter, queria deixar uma recordação quando morresse, para todas as pessoas de quem gostava, e assim fez.
Passou a fazer corações, com trapinhos bonitos, coloridos, que bordava com pontos garridos, e ia oferecendo, a todas as pessoas, vizinhas amigas, filhas de amigas, todas as que mereciam a sua simpatia, esses corações eram oferecidos como recordação da tia Arminda, mas serviam para pregar agulhas e alfinetes, na caixa de costura de cada uma das presenteadas.
Os Alves lá passavam os seus dias sentados a ver que ia para cá e para lá, mas tinham os seus rituais, a senhora Alves levantava-se e todos os dias ia buscar o pãozinho fresquinho, na padaria que havia na aldeia, que ficava na estrada principal, cá por baixo.
Saia de casa sempre impecavelmente arranjada, penteada com o seu carrapito, sapatos meio tacão, nunca andava de chinelos, talvez com medo de escorregar, descia a ladeira até á padaria, e tornava a subi-la até casa, o que era um pouco mais difícil.
Em casa na janela da sala, ficava o marido esperando, e olhando a ladeira para ver se a via subir, sempre preocupado com receio que lhe pudesse acontecer alguma coisa, só quando a conseguia ver a meio da ladeira ficava descansado.
Um certo dia o senhor Alves adoeceu, já tinha oitenta e tal anos, um problema de saúde grave, levou-o a ser hospitalizado, tinha de ser operado, não havia outra solução, a família muito preocupada, pelo seu estado de saúde, em conjugação com a idade avançada.
Foi operado, a situação foi complicada, mas o Alves conseguiu superar tudo, para alegria dos familiares, e admiração até dos profissionais de saúde.
Alguém porém, não conseguiu suportar essa situação, a senhora Alves nunca tinha tido o seu marido doente, agora de repente foi levado para o hospital, ela ficou sozinha, pela primeira vez na sua vida, sem o seu homem, e o pior, por doença.
Ninguém lhe contava a sua real situação, mas bastou ela saber que não o tinha ali, e estava infeliz esse foi o passo para a senhora também com a idade do marido, cair na cama, perder o andar, o gosto pela vida, e ficar pouco a pouco sem forças, mais doente que o marido.
Ele conseguiu melhorar, voltou para casa, conseguiu ficar mais forte do que a esposa, andar de pé, coisa que ala nunca mais conseguiu, e até olhar um pouco por ela.
No mesmo cruzamento da casa dos Alves, havia um estabelecimento de província, café e mercearia onde se vendia de tudo, naquelas lojas onde era possível comprar, o possível de imaginar.
O senhor Alves era lá cliente, de algumas poucas coisas, que as filhas não compravam, entre elas, comprava lá as lâminas para se barbear, só cortava a barba uma vez por semana, isso dava para que, só utilizasse a máquina de barbear de duas lâminas de uma só vez, na próxima já não cortava.
Ele com os seus hábitos de poupança, ia juntando as máquinas todas, já utilizadas, dentro de um saco, não sabia que caminho lhes dar, mas fazia-lhe muita confusão, ter de as deitar para o lixo, pois só as tinha utilizado uma só vez.
Certo dia precisava de comprar mais lâminas, pegou no saco das utilizadas, e foi á mercearia, quando lá chegou diz para a dona da loja. “ó vizinha, venho ver se quer fazer um negócio comigo, trago aqui as lâminas todas que você me tem vendido, você não me quer ficar com elas novamente, eu vendo-lhas baratas, você pode vende-las de novo também mais baratas, só serviram uma vez, é uma pena deita-las fora, assim estas todas podiam dar para uma embalagem nova.”
A vizinha explicou calmamente que não podia fazer tal coisa, se não serviam para ele, também já não podiam servir para outra pessoa, mas foi difícil convence-lo, e ainda lhe disse, “podiam ser boas ainda para alguém que não tenha uma barba tão rija como a minha, e daria para outra embalagem, assim a reforma não chega para fazer a barba”.
A vizinha da loja achou muita graça à sua ideia, quanto tempo é que o senhor Alves teria andado a pensar em fazer aquele negócio, de grande valor, para um homem quase com noventa anos.
Contudo a vida continuou naquela rua, os Carrapiços morreram, o casal Alves também partiu para a eternidade, primeiro a mulher, depois o Sr. Alves, a tia Arminda, deixou os seus corações com as pessoas, e será recordada durante anos, quando olharem os seus corações, iram recordar a meiguice da tia Arminda que ficou com eles, a tia Áurea, deu lugar no seu leito de morte, á alegria das crianças que cresceram naquela rua, a mercearia acabou, porque a vida é feita de ciclos, onde a estagnação asfixia a vida, se não existir evolução.
LÍDIA FRADE